Até o último quartel do século XIX, a presença européia na África
reduzia-se a poucos pontos litorâneos. Em toda a sua grande extensão, a África
era governada por africanos. O continente dividia-se em impérios, reinos e
cidades-estado. Do lado do Atlântico, havia intensas relações entre essas
estruturas políticas e o Brasil. O que se passava num lado do oceano repercutia
no outro. A cruzada anti-escravagista desembocou num novo imperialismo europeu.
A ocupação da África pelas potências européias não logrou destruir muitas
dessas estruturas de poder, algumas das quais serviram de intermediárias entre
o colonizador e os africanos enquanto que outras persistiram na
clandestinidade. A ocupação colonial ocasionou o quase completo corte das
antigas e fortes relações com o Brasil.
O início do século XIX caracteriza-se por um aguçamento dos
nacionalismos. E não só na Europa, mas também nas duas margens mais ao sul do
Atlântico. Na América, as colônias espanholas e portuguesa independentizam-se;
na África, os grandes agrupamentos étnicos se consolidam.
O
Oitocentos é também o século em que o Reino Unido procura fazer do Atlântico um
mar inglês; o século em que se destrói o tráfico triangular entre a Europa, a
América e a África e em que se desfazem as ligações bilaterais entre os dois últimos
continentes; o século em que as sociedades africanas, até então fora das
grandes rotas do caravaneiro e do navegador, começam a integrar-se, ainda que
de modo imperfeito, nas estruturas políticas mundiais.
Na
realidade, a África só abria para o exterior um pouco da casca. Assim fora
desde sempre. O estrangeiro se parava no Sudd, ao sul da
Núbia, em Ualata, Gana, Gaô, Tombuctu e outros caravançarais do Sael, em
Quiloa, Mombaça, Angoche, Zanzibar e iguais feitorias do Índico e, desde a
abertura do Atlântico, nos entrepostos e fortins de Bissau, El Mina, Ajudá,
Luanda, Benguela e tantos mais. Até meados do século XIX, o europeu só avançava
alguns passos para fora de seus muros e paliçadas em algumas poucas áreas e, na
maior parte dos casos, com o consentimento e o apoio dos africanos, ou sob sua
vigilância.
Isso
não impediu que se fossem estabelecendo, desde o século XVII, mas sobretudo a
partir do XVIII, fortes vínculos entre certos pontos do litoral africano e as
costas atlânticas das Américas, como conseqüência do tráfico de escravos. O
comércio de braços humanos não aproximou apenas as praias que ficavam frente a
frente, mas estendeu sertão adentro o seu alinhavado, uma vez que muitos dos
escravos trazidos para o Brasil e que foram trabalhar em Minas ou Goiás vieram
de regiões do interior do continente africano, das savanas e das bordas dos
desertos. Não eram, portanto, falsos, como pareceram a tantos leitores e
críticos, os versos em que Castro Alves se referia a escravos como vindos de
regiões áridas. O poeta, que tinha familiares envolvidos no tráfico, sabia do
que falava, quando em O Navio Negreiro, descreveu os cativos a
dançarem no convés como "os filhos do deserto / onde a terra esposa a luz,
/ onde voa em campo aberto / a tribo dos homens nus ..." Ou quando,
em A Canção Ao Africano, disse, da terra deste, que ''o sol
faz lá tudo em fogo, / faz em brasa toda a areia''.
Ainda
que os contatos diretos entre europeus, americanos e africanos não passassem,
na África, muito além da linha em que findavam as praias, as notícias
esgarçavam-se pelo interior e certas novidades, e só certas novidades,
expandiam-se rapidamente. Assim, a África recebeu e africanizou a rede, a
mandioca e o milho, enquanto o Brasil e Cuba faziam seus o dendê, a malagueta e
a panaria da Costa.
As
trocas deram-se nas duas direções, e a cada um dos lados do Atlântico não era
de todo desconhecido e indiferente o que se passava no outro. A independência
do Brasil, por exemplo, não ficou despercebida na África — e o prova terem sido
dois africanos os primeiros reis a reconhecê-la, o Obá Ósemwede, do Benim, e o
Ologum Ajan, de Eko, Onim ou Lagos. Em Angola, os acontecimentos de 1822
tiveram enorme impacto, chegando a gerar uma corrente favorável à separação de
Portugal e à união ao Brasil.
No
território brasileiro, reis e nobres africanos, vendidos por seus desafetos
como escravos, buscaram, algumas vezes, reconstruir as estruturas políticas e
religiosas das terras de onde haviam partido. Isso terse-ia verificado — para
citar o caso mais conhecido — com Nan Agotiné, a mãe do rei Guezô, do Danxomé,
Dangomé, Daomei ou Daomé. Passada às mãos dos traficantes pelo rei Adandozã,
ele teria refeito os seus altares e a sua Corte na Casa das Minas (ou
Querebetam de Zomadonu), em São Luís do Maranhão (1).
Outros sonharam voltar à África e reconquistar as posições perdidas, não se
excluindo que hajam conspirado para isso. Não faltaria quem lhes levasse as
mensagens a adeptos e descontentes na terra natal, pois a tripulação dos navios
negreiros era em grande parte africana. Um desses príncipes quase logrou tornar
real o sonho. Chamava-se Fruku, no Danxomé, e foi vendido ao Brasil pelo rei
Tegbesu, provavelmente para permitir que Kpengla ascendesse ao trono. Viveu no
Brasil vinte e quatro anos e voltou à Costa dos Escravos com o nome de Dom
Jerônimo. E como Dom Jerônimo, o brasileiro, o príncipe Fruku
disputou o trono do Danxomé, após a morte de Kpengla, em 1789, e só por pouco o
perdeu para Agonglo
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141994000200003
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